24.12.10

[O poeta dedicado de ascendência humilde]

O poeta dedicado de ascendência humilde
foi sempre um cão batido e se o não fosse
viveria mais infeliz ainda por não ser
o cão batido. É bom no fundo, amigo, leal, o dedicado.
Mas, nas entrelinhas dos sorrisos dele,
há sempre um rosnar doce de contida inveja:
é que outros a quem batem são leões ou alifantes,
porém não cães batidos. E não nasceram
nas palhas da província, embora se não escolha
onde se nasce para cão batido.

Jorge de Sena

DEDICÁCIAS seguido de DISCURSO DA GUARDA, Guerra e Paz Editores, SA, 2010

19.12.10

Russian Orthodox Choir, Sacret Russian singing Chesnokov's "Gabriel Appe...



com a devida vénia, colhido no "cantigueiro" - "Gabriel apareceu" - Coro Ortodoxo Russo - (Pavel Chesnokov)

18.12.10

CAPITAL

Casas,  carros,  casas,  casos.
Capital
              encarcerada.

Colos,   calos,  cuspo,  caspa.
Cautos,  castas.  Calvos,  cabras.
Casos,  casos...    Carros,  casas...
Capital
              acumulado.

E capazes.  E capotas.
E que pêsames!  Que passos!
Em que pensas?  Como passas?
Capitães.  E capatazes.

E cartazes.  Que patadas!
E que chaves!  Cofres,  caixas...
Capital
             acautelado.

Cascos,  coxas,  queixos,  cornos.
Os capazes.  Os capados.
Corpos.  Corvos.  Copos,  copos.
Capital,
             oh! capital,
capital
             decapitada!

David Mourão-Ferreira

LIRA DE BOLSO, Publicações Dom Quixote, Lisboa, Novembro de 1999

12.12.10

VII - LAMENTAÇÃO DO SUICIDA EXPERIENTE

O suicídio é tudo: nada
que me preenche a vida.
O suicídio é mudo, cada
veneno é uma saída.

O suicídio é fundo: anda
por dentro numa ferida.
E o suicídio é o mundo, manda
no trânsito da avenida.

O suicídio é luto: fada
que a luz não me alumia.
E o suicídio é fruto, nada
no sumo da melancia.

O suicídio é imundo: tanta
escuridão no dia.
E o suicídio é chumbo, santa
prisão que me asfixia.

Suicídio, entrudo, manta
sobre o caixão da vida,
brilho, canudo, quanta
mecânica suicida.

Luís Adriano Carlos

OITO FRAGMENTOS DO SUICIDA APRENDIZ, in apeadeiro, revista de atitudes literárias, edições Quasi, N.º 1, Primavera de 2001

2.12.10

[A mão. É esta mão que percorre]

14.

A mão. É esta mão que percorre
a pele curtida por anos,
por anos de livres passos,
por ares de bosques e serras,
e vem aqui aninhar-se
entre estes dedos nodosos,
doridos, desajeitados,
que cumprem o seu dever
para nela pôr o ser
de uma nova liberdade.

Pedro Tamen

O LIVRO DO SAPATEIRO, Publicações Dom Quixote, Março de 2010